Insônia
Havia colocado o despertador para as 7h, embora tenha acordado antes, com o canto dos pássaros, sem o barulho do eletrônico. No entanto, pouco antes das 3h da madrugada, a insônia chegou sem avisar.
Mercedes resmungou algo que não consegui entender. Deve ter reclamado da luminária acesa. A cachorrinha, porém, continuou em seu sono régio, imperturbável.
Observei as pilhas de livros, vestígios de reflexões acadêmicas, e pensei em continuar a escrita da tese. Todavia, sentia um certo cansaço, e havia um compromisso pela manhã.
Apenas ouvindo o silêncio, sem razão aparente, resolvi dialogar com as dívidas literárias espalhadas na penumbra da madrugada outonal.
A ideia de conversar com os livros inacabados talvez tenha aparecido quando percebi “O Vício dos Livros” (Afonso Cruz) repousando inquieto, como se me lembrasse de que “um ser humano que não tem uma ferida constantemente aberta não é humano”.
“Zicartola” (Maurício de Castro), emudecido, apesar do violão na capa, tratava do bar onde sambistas cariocas se reuniam para comer, beber e compor – por certo nessa ordem.
João do Rio, em “A alma encantadora das ruas”, relata a dinâmica social brasileira no início do Séc. XX, havia selistas, subcidadãos que catavam carteiras de cigarros e charutos para revender os selos intactos a falsificadores.
“Insônia” (Graciliano Ramos) – que título mais apropriado para a noite – comprei para ler o conto “Um Ladrão”. Já “A Revoada”, de Gabriel G. Márquez, obra que contempla Macondo pela primeira vez, está na fila por conta do desejo de ler todos os livros do mestre do realismo fantástico.
João Cabral de Melo Neto, por sua vez, é a poesia noturna do acaso: “Pelo Sertão não se tem como / não se viver sempre enlutado; / lá o luto não é de vestir, / é de nascer com luto, luto nato.”
“A Mitologia dos Orixás” (R. Prandi) é uma obra extensa sobre as crenças de matriz africana: Orunmilá, o orixá da sabedoria, deixa Orun (o céu) para observar o Aiê (o mundo físico) e ser interrogado pelos humanos.
Em “O Mapeador das Ausências” (Mia Couto), o sono voltou e os livros ficaram para depois. Talvez a insônia seja uma lição sobre o inacabado, a vida, aliás, é obra literária sem fim.