
Um fenômeno curioso e difícil de entender está mexendo com a internet. Bonecas hiper-realistas, as bebês reborn, viraram uma febre. Mais que isso, a polêmica ganha espaço porque muitos adultos não apenas se autodenominam mães ou pais e publicam na internet cenas que causam reações das mais diversas.
Essas ações vão desde partos simulados até a ida ao sistema público de saúde em busca de “atendimento” para a boneca. Já foi registrada até pedido de guarda compartilhada de uma boneca e espalham-se pelo país informações de pedidos de batizados dos “bebês”, incluindo caso deste tipo em Santo Ângelo na semana que passou.
Mas o que leva uma pessoa a agira assim. Esse vínculo está ligado a problemas emocionais? Obsessão pela maternidade ou paternidade? Em busca de respostas, o Jornal das Missões pediu uma avaliação para a psicóloga Letânia Busatto, pós-graduada em Terapia Cognitiva Comportamental (TCC), proprietária da Clínica Psyke. Segundo ela, muitas pessoas parecem viver em uma espécie de realidade paralela, onde objetos e práticas antes irrelevantes assumem um papel central em suas vidas. Um exemplo emblemático disso é o fenômeno das “mães de bebês reborn”.
OBJETOS TRANSICIONAIS
Letânia observa que para algumas pessoas, especialmente mulheres que enfrentaram perdas gestacionais, traumas ou lutos relacionados à maternidade, os bebês reborn podem funcionar como objetos transicionais — termo da psicologia que define itens simbólicos usados para elaborar dores emocionais profundas.
“Nesses casos, o boneco não substitui um filho real, mas oferece um espaço simbólico de afeto e cuidado, ajudando no processo de cura emocional. Em outros contextos, o uso desses bebês pode ser uma estratégia de enfrentamento diante da solidão, da ansiedade, da depressão ou de outros sofrimentos psíquicos”, avalia.
LIMITE E FANTASIA
No entanto, frisa que há um limite entre o uso simbólico e saudável e a perda do contato com a realidade. “Quando a fantasia substitui completamente a vida real — quando a pessoa não consegue mais se relacionar com o mundo externo ou distinguir o real do imaginário —, é necessário considerar a possibilidade de transtornos psíquicos mais sérios, como transtornos dissociativos ou psicóticos. Nesses casos, é essencial o acompanhamento de um profissional de saúde mental, como psicólogos ou psiquiatras”.
Segundo ela, esse fenômeno também pode ser analisado à luz do conceito de “sociedade do espetáculo”, desenvolvido pelo filósofo francês Guy Debord. “Em sua obra, Debord denuncia como, na modernidade, a vida passou a ser dominada por imagens e aparências, substituindo as relações autênticas por representações superficiais. O importante deixou de ser a essência das coisas — o que elas realmente são — e passou a ser a forma como são mostradas aos outros”.
Sociedade cada vez mais desconectada das relações humanas
A busca pelo resultado imediato e as redes sociais
A psicóloga Letânia Busatto salienta que estamos vivendo uma era da busca pelo resultado imediato, onde não se quer mais o processo, mas apenas o produto final. Não se quer fazer dieta, mas tomar cápsulas milagrosas. “Não se quer construir uma carreira, mas alcançar prestígio e altos salários instantaneamente. As pessoas evitam a dor, o esforço, o desconforto. Nesse contexto, produtos como os bebês reborn são atraentes justamente por não exigirem a complexidade do real: não choram, não adoecem, não tiram ninguém da zona de conforto”.
Analisa ainda que as redes sociais intensificam essa lógica ao promover recortes de vidas idealizadas, em que tudo é bonito, limpo e bem-sucedido. “Os bebês reborn, assim, tornam-se uma metáfora perfeita dessa realidade construída: simulam a experiência da maternidade sem trazer os desafios reais. A imagem, o espetáculo, passa a valer mais do que o vínculo autêntico com o outro”.
Na avaliação da psicóloga, esse cenário cria uma sociedade cada vez mais desconectada das relações humanas reais, onde as pessoas se relacionam mais com objetos, símbolos e imagens do que com outras pessoas. “Tudo vira mercadoria, inclusive os afetos. O valor das coisas passa a ser medido pela sua capacidade de ser exibido e consumido visualmente. Como consequência, as relações humanas tornam-se frágeis, descartáveis e, muitas vezes, vazias”.