Quem ainda não sabe o básico
Às vezes me pego pensando, entre uma consulta e outra, sobre o que realmente estamos entregando ao futuro, vendo muitas crianças e jovens à minha frente sem qualquer condição de resolver problemas do dia a dia mais comuns. Em tempos de inteligência artificial, cirurgias feitas por robôs e telas e mais telas, confesso que me espanta a velocidade com que estamos deixando escapar o “antigo” natural: o nó na gravata, o botão que caiu, o ralo que entupiu, a unha que inflamou, o pneu que furou, a grama que cresce em silêncio. Cozinhar o próprio alimento. Tirar o pó da estante. Arrumar a própria cama. Quantos sabem resolver?
Como neurologista, observo diariamente como o cérebro humano se molda àquilo que vive. E ele vive, hoje, sob a égide da praticidade total. Tudo deve ser rápido, tudo deve vir pronto. Pedimos comida pelo celular, a música toca sozinha, até os romances se vivem via aplicativos. E, no meio disso tudo, deixamos de lado pequenas tarefas que pareciam banais, mas eram, e ainda são, formadoras de caráter, identidade e autonomia.
Ensinar um filho a pregar um botão não é sobre costura. É sobre responsabilidade. É sobre olhar um problema e não buscar um atalho ou uma desculpa. É usar as mãos, pacientemente, para reparar o que se quebrou, como farão, um dia, com suas próprias dores.
Dar um nó de gravata não é vaidade. É rito de passagem. É um gesto de pertencimento ao formal, ao respeito e ao compromisso. Cozinhar é mais do que fome, é nutrir, escolher e cuidar de si. Tirar o pó e arrumar a cama são atos de honra pelo próprio espaço, de ordem mental, de higiene da alma. Trocar um pneu, por sua vez, é saber que, no meio do caminho, tudo pode parar, e que você não precisa entrar em pânico, basta saber o que fazer.
No consultório, chegam muitos jovens desorientados, à deriva, com queixas difusas: fadiga, ansiedade, apatia. Às vezes, a raiz não está numa patologia, mas na ausência de enraizamento. De tarefas simples. De autonomia básica. Vivem como quem espera ser salvo por algo de fora. Esquecem, ou nunca aprenderam, que há dignidade em sujar as mãos.
A era digital nos deu muito, mas está nos tirando um pouco da ligação essencial com a vida real. Criamos filhos que sabem conversar com assistentes virtuais, mas que não sabem preparar um arroz soltinho. Sabem programar, mas não sabem se virar sem wi-fi. Sabem tudo, menos se cuidar.E reafirmo, como já enfatizei em vários outros momentos: poucos sabem interagir com estranhos. O assunto no elevador. Na parada de ônibus. Na fila da padaria. O mundo está mais gelado que a cinzenta paisagem de Londres, neste país brasileiro que sempre foi reconhecido por ser despachado e comunicativo. Não se pode iludir o cérebro com paixões via telas. Sou do tempo da cartinha na escola. E triste estou com a falência dos Correios.
Como médico, deixo aqui um apelo: que não abramos mão dessas pequenas lições. Elas são ginástica para o cérebro, mas também para a alma. São vínculos que amarram gerações, que mostram o valor de fazer por si, de cuidar da própria casa, do próprio corpo, do próprio caminho.
E que nossos netos, mesmo que um dia operem computadores com a mente, ainda saibam, com orgulho e destreza, pregar um botão que caiu. E que possam,com naturalidade e sem preguiça, arrumar sua própria camae acordar pegando na mão de seus amores, com mesa de café cheia de “bom-dias”.