Pitadas de passado
Ela entrou no consultório como quem carrega uma casa inteira dentro do peito — e essa casa, velha, rangia a cada passo. Trazia nos cabelos brancos, cuidadosamente presos num coque frouxo, o brilho apagado de um tempo que já foi luz. Na testa, rugas profundas desenhavam mapas de preocupações antigas, e nos olhos — um castanho desbotado pelo sal das lágrimas.
Usava um xale de tricô bordô, daqueles que parecem abraçar quando ninguém mais o faz. A saia era escura, longa, e os sapatos, baixos e gastos, sussurravam histórias a cada movimento. Sentou-se devagar, com um suspiro que não era cansaço físico, mas um desânimo com cheiro de tempo passado.
Lá fora, nono andar, o outono deslizando na garoa com a elegância das estações que sabem chegar e partir. Dentro do meu consultório na capital das Missões, o ar tinha o silêncio de quem escuta, e a luz atravessava as vidraças, muda, porém, atenta. Depois de uma troca tímida de palavras, ela enfim disse:
— Doutor, parece que o tempo… anda me vencendo.
Como neurologista, conheço circuitos, neurotransmissores, os caminhos delicados da memória. Mas ali, não era o cérebro que doía — era o tempo. Ou, talvez, a maneira como ela vinha carregando o passado.Fechei a gaveta das explicações clínicas e resolvi falar com o cuidado que se usa ao tratar porcelanas antigas:
— O passado é uma substância potente. E substância potente, a senhora sabe, precisa de dose certa. Em excesso, envenena.
Ela me olhou, com uma sobrancelha levemente arqueada, como quem estranha um médico que fala palavras leigas. Continuei:
— O passado só serve pra três coisas. E são só essas três. Primeiro: para aprender. Cada erro que ficou pra trás, é lição, servindo mais que muita faculdade. Segundo: pra contar história. Sabe aquelas rodas de conversa, em que a gente ri com amigos das antigas paixões, das trapalhadas, dos “você acredita que eu fiz isso”? Isso é ouro puro. E terceiro: pra lembrar oque a senhora já venceu. Porque, se venceu antes, pode vencer de novo.
— E o resto? — perguntou com a voz mais baixa, como se pisasse no próprio coração.
— O resto é entulho. É sombra. O passado que não ensina, que não arranca riso, nem alimenta coragem… esse, a gente precisa deixar pra trás. Pode visitar raramente, como quem folheia um álbum antigo. Mas não pode morar nele jamais.
Ela não respondeu. Mas ajeitou o xale nos ombros com um novo cuidado. Pegou a receita que lhe entreguei com as mãos mais firmes do que antes. Na porta, antes de sair, virou-se e disse:
— Sabe, doutor… acho que eu vinha usando o passado como cama. Tá na hora de usar como escada.
Sorri. E naquela frase — doce, lúcida, forte — percebi que, pela primeira vez em muito tempo, ela estava novamente a caminho. É hora de viver o agora. Novas páginas. Bom final de semana, queridos. Um abraço do Dr. Norberto.