O vírus da descrença em Santo Ângelo
Cheguei em Santo Ângelo em 2022 cheio de planos, ideias e uma esperança que só quem muda de cidade entende. Tudo era novo: casa, ruas, rostos. E como toda mudança, veio com uma cama nova, dessas que a gente compra mais pela urgência do que pelo gosto. Quando o montador da loja chegou, entre ferramentas e parafusos, soltou, sem cerimônia:
— “Mas o que diabos tu veio fazer nessa cidade pra trás, Dr?”
Confesso: travei. O susto não foi com o tom, que era quase cômico, mas com o conteúdo. Me perguntei se eu tinha perdido alguma notícia importante, se havia deixado passar algo no noticiário, ou se estava diante de uma daquelas verdades não-ditas, que só os moradores conhecem.
Naquele dia, argumentei o contrário. Falei do que via com meus olhos: uma cidade com potencial, com história, com gente boa. Mas o tempo, esse grande neurologista que vive testando nossa percepção, foi me mostrando algo que talvez aquele montador já tivesse sentido na pele: uma espécie de sensação coletiva de desvalia, de desencanto, quase como se o brilho da cidade estivesse escondido debaixo de camadas de descrença.
E o problema disso é que esse tipo de pensamento é contagioso. Como um vírus silencioso, vai passando de boca em boca, contaminando sonhos, apagando o entusiasmo, travando os movimentos.
Mas hoje, enquanto o aroma das tortas começa a tomar conta das ruas, penso diferente. Chegou o Festival das Tortas e com ele, um convite silencioso à reformulação dos nossos próprios pensamentos. Na medicina, aprendi que toda cura começa antes do remédio, antes do concreto. Começa no pensamento. Na crença de que é possível. De que vale a pena. De que nós fazemos parte da solução. Que para melhorar a cidade, precisamos mudarmos juntos ou antes e fazer a nossa parte.
Essa semana, ao comer essas tortas, faço isso como quem toma um remédio de esperança. Um ritual de recomeço. Um gesto simples, mas cheio de intenção: estou aqui, estou fazendo a minha parte, e quero uma cidade melhor.
Aos 31 anos, aprendi que o sucesso, seja individual ou coletivo, exige uma postura simples, porém profunda: honrar o chão que se pisa. Mesmo que ele tenha buracos. Mesmo que ele precise de reparos. Colocar água no deserto. Luz na escuridão. Cola na rachadura. E sobretudo, falar bem do lugar onde se está.
Porque ninguém floresce em solo que renega. Porque a cura, como bem sabe qualquer médico, começa na mente. No olhar que decide ver beleza. No pensamento que escolhe construir em vez de lamentar.Santo Ângelo é o lugar onde estou. E se estou aqui, é aqui que semeio.
E se um dia, alguém me perguntar de novo:— “O que tu veio fazer nessa cidade pra trás?”
Responderei com a boca cheia — de torta, de esperança, e de vontade de ficar.
Dr. Norberto, um cidadão que acredita no potencial da força de nós todos.