O todo que vira em nada

Entrou cabisbaixo. A pasta no colo, os ombros arqueados, o cansaço grudado na pele como se fosse umidade. Sentou-se na poltrona de frente para mim, e antes mesmo de tirar os óculos, soltou o suspiro de quem vem sendo esmagado pelo tempo. Não precisou de muitos rodeios:
— Doutor, eu tô exausto.
A frase vinha carregada: exausto do trabalho, do casamento em ponto morto, dos pais que se foram e deixaram silêncios ocupando a casa. Da conta do supermercado, da academia que virou promessa, do amigo que nunca mais visitou. Falou também da barriga que cresceu sem convite, do desejo de dormir para escapar, do peso de estar sempre “ligado”.
Reclamou da quantidade de telas — do celular, do notebook, da TV, dos avisos em vermelho. Do tempo que evapora em rolagens infinitas. Do sono que vem tarde e vai cedo. Da insônia que chega com perguntas difíceis demais para três da manhã.
Fiquei em silêncio por um tempo. Médico neurologista, sim. Mas naquele momento, mais do que o cérebro dele, me preocupava o que ele havia esquecido de sentir com o coração.
Disse que o entendia. Que aquilo que ele chamava de “fadiga” tinha menos a ver com neurônios e mais a ver com um mundo que cobra velocidade, eficiência e resultado — mas esquece que estamos todos apenas tentando viver. E que viver, às vezes, exige parar.
— Você está querendo ser empresa de capital aberto, — falei — com lucro trimestral, crescimento exponencial e produtividade irrestrita. Mas você é humano. E humanos não têm balanço patrimonial. Têm limites.
Vi seus olhos começarem a brilhar. O que eu disse a seguir, veio num tom mais baixo:
— Não dá pra ser filho, pai, marido, profissional, atleta, sábio e influencer ao mesmo tempo. Não precisa ser tudo. E principalmente: não precisa ser tudo hoje.
Silêncio. Dessa vez, mais leve.
Fizemos um plano. Pequeno. Simples. Caminhadas curtas no fim da tarde, com o celular no modo avião. Um jantar com a esposa, sem televisão. Um álbum de fotos dos pais, para chorar quando quiser — não só quando for “conveniente”. Um aplicativo a menos. Uma culpa a menos. Uma noite inteira de sono, não como luxo, mas como direito.
E ali, naquela consulta, enquanto o tempo escorria devagar e sem pressa, a medicina acontecia não nos exames, mas no encontro. Ele se despediu com um sorriso tímido, como quem carrega ainda o peso da vida, mas agora com espaço para alguma leveza.
Fechei a porta. Respirei fundo. Pensei que, às vezes, o maior remédio que se pode oferecer é a permissão: de sentir, de parar, de não dar conta.
Porque no fim, a cura nem sempre está em fazer mais — mas em lembrar que já somos, mesmo que incompletos, inteiros o suficiente.
É provável que esta crônica não seja apenas narrativa sobre a história do meu paciente. Seja também sobre você. Vamos refletir juntos?