O sabor da conquista
Sou neurologista, mas antes disso, fui menino. E como todo menino dos anos 90, tive meu saquinho de bolitas. Algumas de vidro oval, outras com brilho por dentro, umas grandes, outras riscadas do tanto que viveram. Dia desses, arrumando uma caixa velha na garagem, encontrei meu velho saquinho de pano xadrez, bordado pela minha vó Neli, que hoje já descansa. Dentro dele, lá estavam elas. As minhas bolitas. Cada uma com sua história. E não era exagero: eu lembro de todas.
Tinha uma azul escura que ganhei jogando no recreio contra o Felipe, meu rival mais duro. Perdi muitas para ele antes de aprender a mirar melhor. A transparente com espiral vermelho foi conquistada num torneio improvisado no recreio da terceira série. Uma das minhas favoritas, uma grandona chamada “olho-de-gato”, foi comprada no armazém do seu Perim em São Luiz, com moedas guardadas por semanas. Lembro da mão tremendo para escolher a certa no pote empoeirado. Até as compradas tinham história, não era só ir lá e pegar.
Cada bolita era um troféu. Ganhada com suor, mira, estratégia e, principalmente, com o risco da perda. Porque naquele tempo a gente jogava valendo. Perdia e ganhava, e havia consequências. E isso ensinava mais que qualquer aula. A lidar com a frustração, com a alegria, com a espera. O menino que perdiauma partida, perdia uma bolita. Não era fácil, mas era verdadeiro. Mais do que verdadeiro, era necessário.
Hoje, como neurologista, vejo crianças com tudo ao alcance de um clique. Sem esforço, sem espera, sem conquista. O jogo começa já com tudo desbloqueado. Não se perde tempo mirando, só clicando. O sabor da vitória virou um botão de “comprar agora”.
E é aí que mora a minha saudade. E minha preocupação.
As bolitas me ensinaram que perder também é parte do jogo. Que conquistar é mais gostoso quando se batalha por aquilo. Que objetos simples podem carregar histórias profundas, memórias vivas, valores eternos. Aprendi que a vitória vale mais quando a gente sente que ela pode escapar. Que a conquista só tem gosto quando não vem fácil.
Talvez estejamos perdendo isso. Perdendo o valor do esforço, do tempo, da paciência. Trocando a brincadeira palpável pela recompensa instantânea. Trocando as bolitas vividas por pixels apagáveis.
Guardei de novo meu saquinho, agora com mais carinho. Mas antes, deixei-as sobre a mesa, por uns minutos. Fiquei olhando. E pensei que cada uma delas me fez ser um pouco do que sou hoje. E que seria lindo se todos tivessem a oportunidade desta construção. Guardarei para os meus jogarem daqui uns anos.
Porque mais do que brincar… o que vale mesmo é conquistar.
Mérito. Eis o segredo para formação de caráter e suporte emocional.