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SANTO ÂNGELO
18 de agosto de 2025
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Opinião

O espelho torto das comparações

  • maio 27, 2025
  • 3 min read

No consultório, entre queixas neurológicas e exames que nem sempre explicam tudo, há um sintoma silencioso que se repete em tantas faces: a comparação. Não a saudável, que inspira; mas a outra, corrosiva, que envenena a alma devagar. Aquela que faz o ser humano olhar para o lado, para o alto, para o distante — e raramente para si.

Sonhei, um dia, em ser médico, agricultor e família. Quem sabe, se desse. Hoje, já o sou há dez anos. E, honestamente, acredito que agradeci pouco. Apesar de tantas vezes, semana após semana, nesses mais de 120 meses, ter feito preces — em casa, em templos, ou mesmo no instituto que criei. Mas talvez não o bastante. Talvez não com a profundidade merecida.

É curioso como a mente humana, com toda sua potência criativa, constrói realidades paralelas. Vê no outro um sucesso que não entende por inteiro, uma alegria editada, uma perfeição simulada. E, ao projetar essa ilusão como verdade absoluta, transforma a própria existência num campo de escassez. O que sou parece pouco. O que o outro tem parece muito. E o que me falta ganha um brilho artificial, impossível de alcançar.

Escuto no consultório algumas mentes se queixarem de relacionamentos fragilizados, filhos imperfeitos, casas em manutenção contínua, demandas sociais, reuniões, trabalho, carros antigos. Quando questionadas, confessam que seus sonhos eram exatamente esses: uma família, um filho, uma casa, um trabalho, um carro. Não seria o caso de agradecer?

O cérebro, sempre pronto a proteger, busca sentido. Mas, diante do espelho torto da comparação, perde-se. E, em vez de uma linha coerente — de quem se foi, quem se é, e quem se quer ser — o que se constrói é uma colcha de retalhos feita dos pedaços dos outros. Não há continuidade. Só lacunas.

Entre um diagnóstico e outro, percebo que a maior patologia moderna talvez seja essa: a incapacidade de estar presente. O paciente deseja o corpo que tinha aos 30, o vigor que teve um dia, o que o vizinho aparenta ter, o que a rede social fabrica. E se esquece de quem é — agora, aqui. Do que ainda tem. Do que já é verdade.

A gratidão virou discurso pronto. Mas, na prática, é um músculo atrofiado. Não se exercita gratidão quando se vive em eterna comparação. Porque o foco está sempre no que falta. E, quando tudo falta, nada basta.

Não há paz onde não há presença. Não há cura onde só há ausência. E não há verdade maior do que a de simplesmente existir — com tudo o que já é.

Quem eu fui? Quem eu era? Quem eu sou? Isso basta. Vamos comemorar mais?

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NORBERTO WEBER WERLE

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