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SANTO ÂNGELO
03 de novembro de 2025
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Opinião

Deslembranças

  • outubro 25, 2025
  • 2 min read

Há medos que não têm rosto, apenas ecos emudecidos. Um som distante que vibra no corpo sem que seja possível encontrar o ponto inicial da irradiação. Freud talvez dissesse que o esquecimento é apenas uma forma elegante de lembrar.

Há lembranças que esquecemos por necessidade, como quem fecha os olhos diante da claridade. Esquecemos para viver ou sobreviver. Mas, no silêncio, elas continuam ali, costurando-se em sonhos, lapsos, repetições. Um medo sem objeto, um aperto sem motivo: talvez sejam as lembranças tentando voltar, pedindo tradução.

O problema é que tememos o que não lembramos. A deslembrança é um imenso abismo sob densa neblina. Tememos o vazio da memória, talvez porque na escuridão existam figuras fantasmagóricas nunca lembradas.

O inconsciente, esse subterrâneo habitado por restos, guarda os fragmentos que a consciência não suportou. Quando uma dessas peças se move, sentimos o tremor: uma sensação, um cheiro, um rosto borrado. O passado nos toca por dentro, mas não se deixa ver ou recordar.

Há quem passe a vida fugindo dessas sombras, mantendo-as bem trancadas. Outros, mais cansados, decidem descer as escadas do porão e acender uma luz. Não para recuperar tudo — porque lembrar também dói —, mas para reconhecer que aquilo esquecido ainda vive, às vezes para sempre. Que esquecer não é apagar, é apenas mudar de endereço dentro de si.

Talvez superar um trauma não seja lembrar do que aconteceu, mas deixar de fugir do que ainda reverbera em violentos silêncios. As lembranças que esquecemos nos formam tanto quanto as que lembramos. Elas moldam o modo como amamos, tememos, odiamos, desejamos, etc. O esquecimento é uma espécie de tatuagem invisível: não se vê, mas marca a pele e a alma.

O medo das lembranças esquecidas é, no fundo, o medo de nos reencontrarmos, é o medo do espelho em pedaços no quarto escuro. E é só quando ousamos abrir essa porta — mesmo que um fio de luz entre — que começamos, enfim, a nos lembrar de quem somos, ainda que repleto de feridas.

 

 

 

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Andrey Régis de Melo

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