Adeus
Más notícias nunca carregam consigo facilidades. Tanto de aceitação ao destinatário, quando de emissão por parte do remetente. Em medicina, não é nada diferente. Principalmente porque não se trata de cartas. Mais fácil seria, porém jamais preferiria este meio frio e hostil de comunicação de dificuldades.
Cartas foram feitas para felizes sentimentos. Romances. Saudades. Amores. Já escrevi muitas. Sempre nesta linha. Algumas até com perfumes borrifados no papel rabiscado por caneta esferográfica e selada com cola dos Correios.
Aprendi com os desprazeres nos sombrios corredores noturnos hospitalares a comunicar dificuldades com maestria. A Neurologia exige isso daqueles que prezam pela boa prática médica. Mesmo a olhos desnudos, brandas doenças, em se tratando de cérebro, carregam consigo pesadas cruzes. Lembro-me muito bem da minha primeira comunicação de óbito. Ainda na década passada, atento dentro da UTI do honrado Hospital Universitário de Santa Maria. Era terceiro ano do curso. Foi difícil. Garanto-vos. Até hoje, o é. E o será até a última alma, gravemente enferma, atendida por mim em caso de necessidade.
Nunca fiz rodeios ou escondi o inevitável daqueles ouvidos vorazes por sinceridades. Também nunca fiz pressão por realidades a aqueles que prezassem pelo direito de distanciar-se do contexto que os afligia.
A verdade é uma só: viver não é sinônimo de coração a badalar 80 vezes por minuto. Conheço muitos teoricamente vivos, que não mais gozam das boas experiências que a vida tem para proporcionar. Quem sabe apenas transitam nestes campos, mas sem um objetivo sequer. Lamento.
Contudo nesta semana tive uma experiência do oposto. Raras vezes o havia experimentado. Admirei-me de antemão. A paciente diretamente adentrou-se ao consultório com ares de leveza. A situação era delicada. Câncer nunca é aprazível de ser comunicado. Ainda mais no cérebro. Sede dos nossos desejos. Abrigo dos nossos segredos. Casa dos nossos prazeres. Habitação das nossas opiniões.
Após eu mesmo tirar o selo do exame que trazia, virgem de avaliações por terceiros, aquele sentimento de compadecimento ou compaixão tomou forma do meu organismo. Apesar do autocontrole ser sempre um objetivo, a troca de energia entre seres é inevitável. Calei-me em um silêncio ensurdecedor. “Fique tranquilo doutor”. Foi o que ela me disse. “Seja lá o que for que tens em teus pensamentos, eu confio em vossa graça. A luta não será pequena. Eu sei. Faças o que julgar prudente. O resto faz parte da minha batalha. Deus é conosco. Não careço de comunicação. Confio a pleno em seus anos de estudo”.
Senti um suor gelado subir da lombar para a cervical, em forte intensidade. A todo momento entendi que ela não queria saber o que exatamente estava a emagrecê-la e consumir suas forças e sua memória. Somente perguntou-me se teria condições de “tocar um tango argentino”. Ela era fã de Manuel Bandeira. Para aqueles que já leram o poema “Pneumotórax” do nobre romancista, foi fácil entender. A metáfora soou solta nas paredes do consultório.
Hoje ela não mais se encontra nestes planos. Está a olhar por nós lá de cima. Sempre crente a Deus. Contudo mesmo na beira do desfecho fatal, viveu intensamente junto dos seus, fazendo tudo o que pode para alimentar a sua alma, que morava justamente no seu órgão adoentado. Ela era uma fiel leitora deste jornal.
Foi poeta. Sonhou. E amou na vida. Diria Álvares de Azevedo.
Provavelmente continua viva. Em outros campos. E na minha mente.
Revestamo-nos de religiosidade. Essencial para nossa saúde mental. Amém.