Acorda, Renato
Texto de Mário Simon publicado no JM em 28 de fevereiro de 2009.
Não disse, mas digo, era o poeta Renato, o Binho pensador solerte de refinado humor, eu e o Vande, um come-quieto no sentido literal da palavra. E era uma pescaria. Pescaria que tenha acampamento na beira do rio, mesmo com bons parceiros, dá uma canseira danada. Pior ainda, se durante os dois ou três dias de mato, chover bastante e não tiver um Renato como parceiro. Esse cara vive cada da de sua vida como se fosse o último.
– continuando assim, um dia ele acerta – filosofou o Binho.
Isto dito, vamos abrir outra aba nesta crônica do dia a dia de que foge, às léguas dos folguedos do carnaval. Uma aba que fale da preocupação com a ecologia, particularmente dos cuidados que o homem tem que ter com os rios, questão que se fala muito e pouco se faz.
Nada melhor que uma tomada de consciência em relação aos rios do que ir até eles, entrar neles, pescar neles, ouvir suas canções de marulhos e cachoeiras à noite, matear olhando o dia morrendo no espelho de suas águas. Lindo, muito lindo, muito poético, encantador. O Renato caiu na poesia diante de tanta vida e mistério das correntezas cavando margens, e curvas engolindo o leito do rio.
Mas lá estava um outro que bisbilhotava a outra face do rio. Um rio machucado do sangue da terra vermelha destilado pelos escoadouros abertos nas lavouras de entorno, estradas de sangradouros desajustados, nos caminhos dos dejetos urbanos carregados nas veias do rio e a ele endereçados. Acorda, Renato! Olha esta tua água triste em cujas margens beberam os guarani de outrora, olha e deixa que tua pena de poeta chore o sentimento de abandono e descaso. Aquelas figuras brancas que vês lá no outro lado não são garças nem alvos pássaros: são pedaços de crime em plástico branco que os galhos dos sarandis tentam resgatar das águas num esforço inútil para vê-las mais limpas. Aquela garrafa que desce lentamente o rio não está levando um bilhete apaixonado para um amor distante: é um resto de coca podre sem endereço nem data para se juntar ao planeta da poluição. Essa cor da água nunca espelhará nada, nunca refletirá as poucas árvores vizinhas, nem as encostas de pedra, nem a lua nas noites claras, nem do nascente ou poente. Não há poente mais triste do que esses de nosso rio sem espelho. As águas estão cegas. Nem o lambari de prata se vê ali onde normalmente habita, nem a piava mansa, nem o dourado. Talvez não mais respiram o barro envenenado feito íntimas partículas. Eles morrem juntamente com o caudal cansado.
Mas éramos quatro pescadores, e o rio era a fonte para nossa estado no abrigo de sua margem esquerda. Rio Ijuizinho, que talvez nos ouvisse dissecando causos, lorotas, mentiras inocentes, pulhas e gozações. Coisas de pescadores sem interesse em peixes, mas com um olho nas brasas e na carne, outro no resfriador de latinhas de certa bebida loira, outro nas pesadas nuvens lá do lado do chovedor e outro ainda nos versos do Renato. À noite o céu nos brindava com fogos de artifício do deus dos raios e trovões.
Esse estado de ser dos quatro era o convite para salvar o mundo, particularmente o rio, o nosso rio Ijuizinho. Foi o Binho que perguntou se havia vínculos da população com o rio. – vínculos da população com o rio? Como assim! – Se não há vínculos da população que se serve de suas águas, não haverá força que possa ser dada ao rio. Um rio não pode ficar sozinho. Um rio é um animal e só agride para se defender. Mas é um pobre animal indefeso. Abandonado, ele pesteia e sua peste contamina a população que dele precisa. Por isso, é fundamental a mobilização popular, desde as nascentes até a foz do rio. O homem tem que cuidar do rio como cuida da mulher bonita que ama. Dois corpos a serem preservados do lixo humano. E vou dizer mais: tudo isso está na legislação brasileira, naquilo que chamam de comitês de bacias, agências de águas e outros que não me ocorrem agora, porque estou impedido de continuar esse discurso visto que o Renato está dormindo e começou a roncar.
– Mas é mesmo, esse filho da mãe não quis sestear, não deixou ninguém tirar a soneca da tarde e, agora dorme na cadeira como frade gordo? Acorda Renato – gritamos juntos.
Ele saltou cadeira com os olhos esbugalhados, mas logo retomou a serenidade do frade gordo.
– Eu estava ouvindo aqui, na minha. Só não ri porque a piada é mais velha que andar a pé. Contem mais uma que daí eu vou contribuir com minha risada.